Fazer café, amor e filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas (2ª ed.)

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Fazer café, amor e filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas (2ª ed.)

GOYA, Will. Fazer café, amor e filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas. 2. ed. Porto Alegre: Editora Mikelis, 2018. 270 p. (ISBN 978-85-93458-23-1).

DISPONÍVEL em versão impressa e digital: http://editoramikelis.com

Prefácio

 

 

O poeta é semelhante ao príncipe da altura / Que busca a tempestade e ri da flecha no ar; / Exilado no chão, em meio à corja impura, / As asas de gigante impedem-no de andar.

(Baudelaire)

Conheci o filósofo clínico e professor universitário Will Goya há alguns anos, durante a preparação de originais de seu livro A escuta e o silêncio (2017). Certo dia, ele entrou em minha sala, iluminado pelo início da manhã, e bradou: “para começar bem o dia, a primeira coisa a se fazer é ler um poema”. E pôs-se a declamar. A Editora inteira parou. Definitivamente, não é uma dessas pessoas que passam por nossas vidas. Ele fica.

E já estando, antes de me apresentar a pessoa que é – essa que conheço um pouco a cada dia – apresentou-se a mim poeta. Ao partilhar comigo seus versos, inicialmente recebeu críticas severas. Algumas ele desdenhou, mas o poeta é isto mesmo: o ser que contraria. Quando eu o dizia prosaico, ele julgava-me gramatiqueira insensível. Quando eu queria “sumir” com as notas, ele providenciava sua “Introdução às notas dos poemas”. Quando eu dizia que poeta é poeta e filósofo é filósofo, ele me convidava para um café. E assim travávamos embates. “Quando a razão não vence, o amor cede”, encerra ele.

Certo é que muitos de seus versos sofreram lapidação. Foram filosófica e esteticamente amadurecidos (“Entre um café e outro, / Ele escreve e erra, escreve e erra, / Mas seu único erro ainda seria não reescrever.”).[1] Outros estavam prontos, perfeitos, desde que surgiram. Caracol Humano é prova disso, mesmo que Goya o diga “poema menor”:

Quando saí de casa pisei num caramujo. / Ele estava só, sujo. / Talvez nem tenha notado / Que… / Já tive amigos caramujos / E que tantas vezes caramujamos juntos, / Juntos…[2]

Daquele momento de leitura inicial para este – em que lhes apresento Fazer café, amor e filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas – reli muitas vezes os versos de Will Goya, dialoguei com eles, recebi-os com pluralidade. Trata-se de um conjunto de poemas autobiográficos, um tesouro pessoal escrito lentamente, por mais de vinte anos, revelando alguém que tem algo a dizer ao mundo, mas sem pressa, embora de modo diligente e inquieto.

A elaboração biográfica que aqui se faz, parte, especialmente, de uma história da transformação intelectual e da sensibilidade, inseridas em um tempo e em um lugar, numa intenção de memória que relaciona sujeito e sociedade. Nesse processo, ao se constituir como sujeito, Goya expõe também o que considera ser a identidade do mundo no qual estão ele e as outras pessoas com as quais se relaciona. Revela o poeta: “Em bom português, eu somos.”

E outra vez o contradigo, quando enalteço – eleito entre meus prediletos, confesso – um poema escrito pelo jovenzinho Will, então com apenas 15 anos. Ritmo, melodia, ironia e crítica reunidos em versos. Confiram, cumprindo o seu papel, a voz, o corpo e a presença, em um trecho de Estrangeiro:

Índias terras de Portugal, / De vermelha ibirapitanga, / Que El Rei ceifa, farta-se e manga / O adeus verde descomunal. / Mui há nessa terra quem crê. / São todos valentes de fé, / Tão raças! Tupi Macro-jê… / De adubo se fazem até / Que a terra carmim tudo dê.[3]

Fazer café, amor e filosofia é uma vida cantada em versos, ora simples, ora complexos, ora cômicos, ora tensos, ora melancólicos, ora sonhadores, ora tenros, ora indignados. São poemas de vida e criação, mas também de dor e luto. Às vezes, um desejo de cantar o passado, dividindo sua experiência de vida com o leitor. E escrevendo a si mesmo, Goya inscreve seu mundo, suas experiências como adolescente, como homem em conflito, como intelectual, porta-voz de um tempo de acelerada mudança, que busca compreender e interpretar. Desse modo, ele se revela contínuo aprendiz de tudo o que os livros e a própria vida lhe fossem capazes de ensinar: uma experiência de transformação paciente e diária. Evoquemos sua voz:

O que acontece comigo? / Caminho infinitas distâncias em meu olhar perdido. / Parece que vou ser feliz a qualquer momento… / (…) / Eu, que nem existia, ocupado em fazer coisas, / De repente e sem motivos, existo e amo.[4]

Se seus poemas nos denunciam um eu-poético composto como si mesmo e como os outros – seriam “imagens do outro como um si mesmo”? –, em sua “Introdução às notas dos poemas”, Will, tece sobre si e não sobre seus versos, uma reflexão e uma explicação. No entanto, essa tessitura não o revela de forma completa e definitiva. Ele cria-nos uma ilusão biográfica, pois, entre tudo o que viveu, faz escolhas e articula sua própria maneira de encontrar-se, lembrando-se de si. Interpretar esses processos vividos por Goya apresenta-se como um desafio ao leitor, na medida em que sua poética constrói, mantém ou transforma a doxa do poeta, que revela sua intenção: “iniciar os leitores à compreensão do que seriam meus sigilos”.[5] Então esse não seria o modo de marcar o lugar discursivo do estudioso, a sua episteme?

Além disso, durante toda a obra, poesia e Filosofia, embora separadas em suas identidades, promovem um movimento de ir e vir de uma a outra, sem que cada qual esteja acima ou abaixo, numa posição de superioridade ou inferioridade. Esse ir e vir é possível pelo entre-lugar em que ambas se cruzam: a linguagem. O poeta diz estar “cumprindo o destino e o heroísmo modesto da tarefa de ser filósofo e poeta”[6] – e tem razão. Afinal, de quem é a voz nos versos “quando vem a saudade, boca selada de um amor distante, / Sabe o filósofo que o tempo é feito de separações”?[7] Fala-nos o filósofo, o homem ou o poeta? Ou seria sua “consciência filosófica da vida”?

Certamente, se é inegável que há poetas sensibilizados pela Filosofia, como Fernando Pessoa e Mário de Andrade, do mesmo modo há filósofos contagiados pela poesia, como Nietzsche, Wittgenstein ou Heidegger. Talvez por isso percebemos claramente a influência de Pessoa em seu poema Segredo ou o dialogismo com Ortega Y Gasset, no poema Identidade:

O dilema nunca foi ‘ser ou não ser’. / A verdadeira questão é: / Aqui e agora, quem eu sou em relação a? / Pai, motorista, amante, professor, terapeuta, paciente, filho, / Ou calmo, nervoso, débil, lúcido, atleta e preguiçoso? / Ninguém é totalmente algo. Apenas circunstanciamos… / É um não-eu, outrem, que melhor me define.[8]

Para Will Goya, “o bom poeta é, portanto, um encantador de almas cujas palavras mágicas convertem pensamentos cotidianos em poesia”.[9] Quem o conhece sabe que sua poética é marcada pela voz, em seu aspecto físico de força viva, como suporte vocal da comunicação humana. Ele é um poeta que se inspira imaginando a declamação. Portanto, esse encantamento de que ele fala depende prioritariamente da copresença, da performance como modo eficaz de comunicação poética. Em suas palavras:

Um poema é tão mais perfeito e universal quanto mais ultrapassa seu próprio autor, transborda o texto, subverte a palavra e obriga o expectante a se calar ou a ter que repetir os versos que o destituíram da condição passiva para se tornar coautor e arrematar: ‘– é exatamente isso que eu sinto e penso, mas não sei explicar’.[10]

Uma vez em cena, o poema se joga. Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura, (2014), defende essa “carnalidade” do texto, o envolvimento e a leitura amorosa, em virtude do importante papel que o corpo desempenha e, consequentemente, da voz como seu prolongamento. Reforça esse teórico que é pelo corpo que estamos no mundo, que tocamos, cheiramos, representamos e sentimos, e a voz faz o homem ir além dos seus limites corporais, ela “desaloja o homem do seu corpo”. De acordo com Goya,

Um poema conceitual nunca estará isento de significações secundárias, de interpretação, bojo e contextualização linguística; de deciframento filosófico, engajamento existencial, experiência física e ou abstrata. O poema não representa, é a realidade mesma com todas as nossas faculdades psíquicas, espirituais e até com nossos corpos. (…) Desde as primeiras literaturas, histórias, religiões e fábulas de mitos, foi pela linguagem poética, cantada e incorporada na carnalidade do mundo que o sentido da palavra pouco a pouco legitimou a realidade do humano e se tornou propriedade cultural, do interesse público, da ética, da epistemologia e das ações. Do Oriente ao Ocidente, a história da inteligência deve muito à poesia. Portanto, que ninguém jamais ouse dizer ‘poemas são só palavras!’.[11]

Em Fazer café, amor e filosofia Will Goya convida o leitor não somente à leitura, mas a interagir corporalmente com a obra, num ato dialógico com o texto, encenando a palavra com sonoridade, ritmo e elementos visuais. Neste momento, incluam-se como presença corporal dessa performance e desfrutem do prazer do texto. Avisa o poeta: “há muitos dias na semana em que o dia inteiro é domingo”.[12]

Gabriela Azeredo Santos

Mestra em Letras: Literatura e Crítica Literária

 

***

INTRODUÇÃO ÀS NOTAS DOS POEMAS

Esta é minha autobiografia poética, a soma imperfeita dos poemas que sobreviveram a mim mesmo, com severas autocríticas. Escrevi minha primeira coletânea na adolescência, fiz algumas cópias e as distribuí a alguns amigos, sob o codinome de “O Lírio Branco”. Muitos anos depois ganhei de volta um exemplar daquele maço de papéis, já envelhecidos e amarelados. Eu já havia queimado quase todos os poemas daquele meu suposto livro de sentimentos reflexivos, por julgá-los não literários. Restaram pouquíssimos, contidos agora neste atual livrinho.

Na época, não queria a vergonha de alguém perder seu tempo lendo sentimentos tão ensimesmados e frágeis. Além do que, dizia para mim mesmo: “– já existem tantos livros sábios e belos, que o mundo não precisa de algo menor”. Hoje disfarço melhor a mesma timidez que ainda sobrevive, renovando na alma antigas justificativas, como se me dissesse no pensamento: “– eu era jovem…”. Convicto de que “minhas” palavras nada são ante a poesia sagrada dos grandes homens, quando depois ainda quis destruir aqueles velhos poemas da juventude, os que não foram queimados, senti que já não eram mais meus, que já não possuía sobre eles mais nenhum direito, posse ou autoria.

Devo declarar que “meus” poemas foram, em muito, psicografias das circunstâncias de uma época na qual eu acreditei ser protagonista da minha vida, apenas. Nunca os escrevi com o pronome totalmente “eu”, sentindo-me criador e de inteira posse das minhas subjetividades. Antes, sentia-me como um refém de uma situação da existência, na qual o mundo me impunha com tal obrigação de escrever que, reduzido aos limites da linguagem, só me cabia perguntar como eu poderia dizer aquilo que eu mal sabia sentir, de tão grande? Costumeiramente eu me perguntava o que eu poderia dizer se eu tivesse que dizer algo importante. É como se um não-eu inefável me escolhesse, como escolhe outros escritores, apenas como testemunha de palavras. Hoje tenho 47 anos de corpo, e aquela mesma sensação lúcida de que toda a minha vida (que foi e que será) é um teatro metafísico, um grande sonho de preliminares, que um dia irá acordar para o que eu ainda não sei.

Na atual coleção apresento minha consciência filosófica da vida, dramática de si mesma (crítica, amorosa, introspectiva e determinada, com preguiça e coragem suficientes), mais possuída do que possuidora de grave espiritualidade em permanente conflito e comunhão com o mundo. Meus óculos e meus hormônios são feitos de um romantismo barroco contra e a favor das minhas próprias tendências. Viver por escrito, ou emocionar gramaticalmente, exigiu-me o esforço e a regência das minhas próprias sintaxes, o que me obrigou poema-a-poema a ser outro na criação literária, ter outra visão significante de tudo. De modo que, para mim, escrever é sempre uma tarefa muito difícil, ainda que prazerosa, de reencarnar minhas ideias em novo sentimento poético, sem jamais voltar a ser a exata mesma pessoa, o mesmo autor.

Dou por exemplo as atuais reescritas desta segunda reedição do livro, da “Introdução às notas dos poemas” e do “Pequeno ensaio sobre a legitimidade da poesia filosófica”, o que também me exigiram reacomodações em alguns versos dos poemas, provocados no conjunto pela alteração nos novos espaçamentos das margens e tamanho das fontes. À semelhança de um processo de tradução, quando a mensagem não é apenas um conteúdo significante, mas sobretudo uma formatação poética e estética do sentido, a conversão mais perfeita seria aquela em que o texto chegasse ao leitor com o mesmo efeito impactante do original. Nisso há ganhos e perdas. Um esforço e uma entrega íntima de reconexão com as fontes subjetivas e autênticas do sentimento inspirador.

Estou absolutamente ciente de que a cada novo texto escrito ou refeito, meu corpo físico é de novo habitado por uma certa nova alma, nascida de um novo poema, refazendo o sentido existencial da minha assinatura. De um “eu-feito” para outro “eu-efeito”. Acontece-me o mesmo com as boas leituras. Escrever minha existência poética, nesse sentido, não é desabafo, autorretrato ou confidência. Definitivamente, não é prova de evolução. É a arte filosófica de reescrever minha história ora com a autonomia da razão, outrora pelas psicografias inconscientes da vida, através de mim. É isso ou o que me parece ser.

Quando sinto que serei possuído pela necessidade de novamente escrever, eu me preparo para morrer de velho (não de novo), feito um cachorro que se afasta do seu dono em busca de solidão com o instinto lúcido, aceitando as consequências, por ser-lhe natural. A verdade é que nasci exilado no plano material da existência, estrangeiro, e tudo para mim sempre foi estranho aqui. Em uma só existência, já me sinto bastante reencarnado. Nunca o suficiente. Há sempre vida depois da vida. Quando me perguntam de onde eu sou, como se me perguntassem quem sou eu, confesso, isso me deixa algo constrangido por nunca conseguir me desobrigar à busca de uma resposta filosófica. Às vezes, recusando-me a dizer a simples escolha de um município, brinco com a verdade e respondo: “– eu vim do Céu, como todo mundo… Estou passando um tempo aqui na Terra e depois irei voltar para casa”. Muitos riem, outros não entendem, mas alguns até se dispõe a filosofar a respeito. O que gosto muito.

Volvendo ao tema central, as notas dos poemas trazem deliberadamente a história psicológica e existencial de cada poema, o como e, às vezes, o porquê intuitivo de cada inspiração filosófica. Elas não explicam (nem pretendem) meus poemas em si mesmos, apenas descrevem as condições que os provocaram. Solilóquios. Minhas notas são jogos de aventura, verdade e blefe, que dentro de mim se mostram ambições eloquentes e que me levam a conclusões paradoxais, a uma impossibilidade didática de argumentos senão a poesia. Essas notas não pretendem iniciar os leitores à compreensão do que seriam meus sigilos, apenas denunciar uma febre e uma necessidade tola e insustentável de eternidade, como se a palavra magicamente exibisse seu significado só por haver sido pronunciada; e o leitor, por qualquer força incompreensível, fosse instantaneamente embevecido pela experiência da maturidade. Uma incrível tensão dramática de querer agarrar o inédito da surpresa, a emoção desprevenida, e publicá-la ao mundo inteiro, tal como se goza na revelação de um segredo que não se aguenta mais. Encapsulada no poema, a palavra filosoficamente comprometida experimenta a coragem revolucionária de que é possível transformar a banalidade, o sono e a distração nervosa dos afazeres mais comuns em obras sagradas ou extraordinárias; a criatura em criadora; o psicológico em existencial; o ser notado em ser notável.

A razão dos poemas é a emoção, o impactante silêncio e o desconforto da beleza de o leitor não ser capaz – reunidos todos os seus esforços – de expressar melhor tudo aquilo que o poeta soube dizer, de outra maneira. A poesia é, de súbito, o prazeroso desconforto de sentir livres seus próprios pensamentos incontidos, mal sabidos, revelados em palavras alheias com grande intimidade de interpretação. Feito a nudez dentro das roupas, as palavras, uma vez despidas, lidas ou ouvidas, não voltam atrás. Assim, tudo o que antes era oculto, óbvio e esquecido é publicado à sensação atrevida do autoconhecimento: “e quem pode abrir a janela da hesitação, / Se a maçaneta do saber não está do lado de fora?”.[13]

Um poema é tão mais perfeito e universal quanto mais ultrapassa seu próprio autor, transborda o texto, subverte a palavra e obriga o expectante a se calar ou a ter que repetir os versos que o destituíram da condição passiva para se tornar coautor e arrematar: “– é exatamente isso que eu sinto e penso, mas não sei explicar”. Todo poema é grande, mas os grandes poemas são aqueles que foram desprivatizados, tornaram-se públicos e já não morrem mais com a pessoa do poeta. Transmudam-se em cultura, patrimônio da humanidade de cada um. O bom leitor não apenas interpreta personagens, obras ou autores. Em cada poema, no ato da leitura, ele reescreve o texto com a perspectiva viva do seu olhar, ressignificando a língua. O bom poeta é um encantador de almas cujas palavras mágicas convertem pensamentos cotidianos em poesia.

Nesse sentido, vale o esforço de publicar aqui as minhas notas dos poemas, a fim de se poder testemunhar a transfiguração do mundo das coisas comuns – rotina psicológica do nosso cotidiano – em poesia e filosofia de vida:

Ser poeta é descobrir que não há momentos comuns. / (…) / Um homem só tem que dizer a verdade sem palavras, / Que a ouvir basta / Quando se tem a coragem de fazer o que se sabe que é certo.[14]

Tais apontamentos da minha biografia querem apenas revelar a alquimia de ser possível transformar o simples ato de eu quase haver pisado em um caramujo “na obrigação moral de colocar-me no lugar daqueles que eu ofendia sem perceber”.[15] Assim escrevo, cumprindo o destino e o heroísmo modesto da tarefa de ser filósofo e poeta.

Dito isso, ofereço dois caminhos de leitura, ao gosto: que se leiam as notas, por curiosidade ou simpatia, aqueles que se interessarem pela historicidade das reflexões poéticas. Ali eu me escondo e me revelo nas circunstâncias do entorno. Não existem as versões “dentro” e “fora” da vida. Os fatos psíquicos que dão luz aos conceitos filosóficos e objetivos são atos inaugurais do pensar a realidade, como atesta a Filosofia Clínica.[16] No entanto, quem preferir a poesia pela crítica literária, independentemente da situação que desencadeia ou particulariza a qualidade do texto, por favor, recuse essas tolices de notas e datas. Além disso, há infinitas outras possibilidades de leitura e entendimento, tais como o apreço do simples e rico deleite da subjetividade, decidindo ao momento seu julgamento estético e sentimental. De resto, as combinações.

Com tanta poesia e filosofia transbordando em mim, cheguei onde eu próprio me tornei inevitável: quanto mais busquei o que era profundamente só meu, de corpo e alma, mais fui obrigado a comparar minhas intimidades ao que é universal e demasiadamente humano: a percepção da existência dos outros. Por fim, é isso: meu “eu” só me pertence por comparação, secundariamente. Quando paro para escrever e me demoro em analisar os outros, presto muita atenção em meus sentimentos a respeito. Ao inverso e reverso, é como vejo que me vejo. Questão de método. Todo conhecimento é inevitável autoconhecimento:

O dilema nunca foi ‘ser ou não ser’. / A verdadeira questão é: / ‘Aqui e agora, quem eu sou em relação a?’ / (…) / Ninguém é totalmente algo. Apenas circunstanciamos…[17]

Ser introspectivo foi minha sabedoria poética, minha maneira de crescer “por dentro”. A poesia é um dos meus exercícios éticos mais belos da vida. E ensinou-me a ser menos egoísta, apesar de mim. Só assim, exatamente quando escrevo, nos instantes sofridos do conflito, quando busco voluntário a dor de sofrer bem ou mal do que os outros sofrem é que reconheço “com-paixão” a minha alma em paz. Essa poesia em mim é tão valiosa que permanece desconhecido o seu valor.

 

 

[1] Trecho do poema Sem inspiração – p. 59.

[2] Trecho do poema Caracol humano – p. 125.

[3] Trecho do poema Estrangeiro – p. 121.

[4] Trecho do poema Fragrância – p. 51.

[5] Introdução às notas dos poemas, p. 26.

[6] Introdução às notas dos poemas, p. 29.

[7] Trecho do poema Amor de filósofo – p. 46.

[8] Trecho do poema Identidade – p. 188.

[9] Introdução às notas dos poemas, p. 28.

[10] Introdução às notas dos poemas, p. 27-28.

[11] Pequeno ensaio sobre a legitimidade da poesia filosófica, p. 257-258.

[12] Trecho do poema Outra vez, p. 207.

[13] Trecho do poema Identidade – p. 188.

[14] Trecho do poema Tudo o que se deve dizer – p. 220.

[15] Nota do poema Caracol humano – p. 123.

[16] Cf. GOYA, 2017.

[17] Trecho do poema Identidade – p. 188.